domingo, 25 de maio de 2008

O Bandido da Luz Vermelha: um filme selvagem e intuitivo

Por Isabela Kastrup

Na safra dos filmes brasileiros produzidos no ano de 1968, O Bandido da Luz Vermelha, de Rogério Sganzerla, se destaca como ousadamente experimental. O diretor tinha apenas 22 anos quando realizou o filme, que entrou para a história como o maior representante do chamado cinema marginal brasileiro – rótulo dado às obras dos cineastas oriundos da Boca do Lixo de São Paulo (mais tarde esse tipo de cinema também passou a ser chamado de udigrudi – corruptela do “underground” norte-americano).

No mesmo ano em que foi produzido, O Bandido da Luz vermelha conquistou quatro prêmios no Festival de Brasília: melhor direção, melhor montagem, melhor figurino e melhor filme.

O enredo, de gênero policial, é uma livre adaptação de fatos verídicos: as peripécias do bandido João Acácio Pereira da Costa, que assaltou diversas residências de pessoas ricas em São Paulo. O ladrão, interpretado no cinema por Paulo Vilaça, sempre utilizava uma lanterna vermelha (daí o apelido que ganhou da imprensa e que deu origem ao título do filme). Seu estilo desconcertava a polícia, já que seus métodos de ação eram criativos e inusitados. Além disso, João Acácio fazia questão de manter relações sexuais com as mulheres que roubava, com as quais tinha longas conversas.Sganzerla transformou a história do bandido numa metáfora das mazelas da sociedade brasileira da época. Os personagens são emblemáticos: o delegado Cabeção, interpretado por Luis Linhares, é homem que vive e sobrevive da morte; J.B. da Silva (Pagano Sobrinho) é a encarnação caricata do político corrupto, líder da organização “Mão Negra”, que tem como um de seus integrantes Martin Bormann, um carrasco nazista foragido da Segunda Guerra Mundial vivendo clandestinamente na América Latina; o afilhado do político, Lucho Gatica (Roberto Luna), é um misto de brigão e puxa-saco sem vergonha na cara; a prostituta Janete Jane (Helena Inês) nos leva ao íntimo do bandido. Ao se apaixonar por ela, ele se fragiliza e quebra a rotina de sua vida de crimes: acaba cometendo os descuidos que o conduzem ao suicídio final.

As influências de outros grandes cineastas são visíveis: para começar, há referências ao Cidadão Kane, de Orson Welles, que também utiliza a linguagem da imprensa para narrar a biografia do personagem principal. Só que a imprensa do filme de Sganzerla não é o cinejornal que mostra a vida de Kane de forma épica, mas um dos nossos debochados programas de rádio popular e sensacionalista, do tipo A Cidade contra o Crime.

O final do filme de Sganzerla lembra Pierrot Le Fou, de Godard, filme em que o personagem vivido por Jean Paul Belmondo, um jovem que transgride a lei sem parar, se suicida amarrando dinamite em volta da cabeça. Percebendo que vai ser preso, o bandido do filme de Sganzerla decide se matar. Antes de chegar ao local onde pretende se suicidar, ele finge ter sido atingido por uma bala policial no ombro, e sai cambaleando às gargalhadas. Assim, ironiza a incompetência da polícia, que não conseguiu prendê-lo. Depois envolve a cabeça e o torso com fios elétricos e, pisando numa grande chave elétrica (que metaforicamente funciona num monte de lixo na favela), morre eletrocutado. O cadáver é descoberto por policiais displicentes que chamam o delegado Cabeção – embora todos achem que aquele indivíduo morto não pode ser o famoso bandido da luz vermelha. O delegado, ao chegar, está desatento e pisa na mesma chave elétrica. Morre abraçado ao bandido, os dois como frutos podres da mesma árvore, do mesmo sistema social, falido e corrupto. Ao morrer, o delegado balbucia comicamente a palavra "Mamãe!".

Um disco voador aparece na imprensa, para desviar a atenção do povo do significado da morte do bandido e das finalidades da organização “Mão Negra”.

Para a pesquisadora Roberta Canuto, que fez desse filme de Sganzerla o principal objeto de estudo da sua dissertação de mestrado para a Faculdade de Letras da Universidade Federal de Minas Gerais, a obra do cineasta é uma “síntese experimental do pensamento de seu criador”. Na visão de Roberta, Sganzerla realizou “uma obra ao mesmo tempo selvagem e intuitiva, mas repleta de um arsenal teórico e crítico cultivado ao longo de toda uma vida dedicada ao cinema”. A pesquisadora chegou à essa conclusão porque Sganzerla também foi crítico de cinema, e por isso pôde realizar essa “obra-síntese, um filme-laboratório da sua brilhante trajetória na crítica e reflexão cinematográfica, justamente esse território insólito que habita entre o pensar e o fazer que essa pesquisa parece trilhar”.

O fato é que Rogério Sganzerla inaugurou uma segunda vertente do cinema brasileiro no tempo dos anos de chumbo da ditadura militar. De um lado, estavam os cineastas de linha marxista, comprometidos com os ideais políticos do CPC – Centro Popular de Cultura, que fizeram filmes sobre a miséria e a luta de classes. Fazendo contraponto a esses, Rogério Sganzerla e o carioca Júlio Bressane preferiram os ideais libertários da vanguarda, preservando outra tradição da arte e da cultura brasileira: a ironia e o deboche, que encontram ressonâncias na obra de Oswald de Andrade e sua inesquecível selvageria antropofágica.

Cartaz do filme

Paulo Vilaça (como o Bandido da Luz Vermelha) e Helena Inês, encarnando a prostituta Janete Jane

Um comentário:

Georgethon "T. A." Lima disse...

Legal a crítica. Só é importante lembrar que quem está na foto com a Helena Ignez é o Roberto Luna.