segunda-feira, 26 de maio de 2008

Protestos na arte

Por Tatiana Arruda (Editoria de Literatura)

Mesmo passados 40 anos a sensação é de que o ano de 1968 não acabou. Realmente, enquanto a memória dos acontecimentos daquela época estiver viva, ela não será esquecida. Os protestos contra a ditadura uniram uma geração em torno de um ideal comum. A euforia e o idealismo do movimento estudantil tomaram conta das ruas e desafiou os militares. As artes plásticas, a música e a literatura criaram movimentos de contracultura. A poesia do “desbunde” e poesia marginal são exemplos da expressão literária daquela época.
A liberdade artística estava por um fio, mas ainda existia. Os poetas do “desbunde” publicavam seus textos em revistas alternativas e jornais como o “Pasquim”. O grupo formado pelos intelectuais Henfil, Paulo Francis, Ruy Castro, Ziraldo e tendo como colaboradores Chico Buarque e Rubem Fonseca imprimiam um tom irônico a poesias que criticavam a opressão.
Na Academia Brasileira de Letras, João Cabral de Melo Neto é eleito para a vaga de Assis Chateaubriand. Carlos Drumonnd de Andrade publica "Boitempo & A falta que ama". Já Ferreira Gullar, escreve um poema sobre a Guerra do Vietnã, “Por você, por mim”, e o texto da peça “Dr. Getúlio, sua vida e sua glória”, uma parceria com Dias Gomes. Após o decreto do AI-5, em dezembro de 68, ele é preso junto com Paulo Francis, Caetano Veloso e Gilberto Gil.
Com o Ato Institucional nº. 5 os militares começaram a censurar com rigor a produção artística. A resistência cultural veio em forma de mimeógrafo e fotocópias. Os poetas, ditos marginais ou geração mimeógrafo, distribuíam suas obras de mão em mão, em bares, nas portas de teatros, praças, tudo para assegurar que elas chegassem ao seu público. Um panorama deste movimento pode ser encontrado no livro “26 poetas hoje”, da pesquisadora Heloísa Buarque de Hollanda. Entre os poetas desse movimento estão Chacal, Flávio Aguiar, Roberto Piva e Ana Cristina César.

Por você por mim
Ferreira Gullar – Toda Poesia (1950/1980)

A noite, a noite, que se passa? diz
que se passa, esta serpente vasta em convulsão, esta
pantera lilás, de carne
lilás, a noite, esta usina
no ventre da florest
a, no vale,
sob os lençóis de lama e acetileno, a aurora,
o relógio da aurora, batendo, batendo,
quebrado entre cabelos, entre músculos mortos, na podridão
a boca destroçada já não diz a esperança,
batend
o
Ah, como é difícil amanhecer em Thua Thien.
Mas amanhece.

Que se passa em Huê? em Da Nang? No Delta
do Mekong? T
e pergunto,
nesta manhã de abril no Rio de Janeiro,
te pergunto,
que se passa no Vietnam?

As águas explodem como granadas, os arrozais
se queimam em fósforo e sangue
entre fuzis

as crianças
fogem dos jardins onde
açucenas pulsam
como bombas-relógio, os jasmineiros
soltam gases
, a máquina
da primavera
danificada
não consegue sorrir.

Há mortos demais no regaço de Mac Hoa.
Há mortos demais
nos campos de arroz, sob os pinheiros,
às margens dos caminhos qu
e conduzem a Camau.

O Vietnam agora é uma vasta oficina da morte, nos campos
da morte, o motor
da vida gira ao contrário, não
para sustentar a cor da íris,

a tessitura da carne, gira
ao contrário, a desfazer a vida,
o maravilhoso aparelho
do corpo, gira
ao contrário das constelações, a vida
ao contrári
o, dentro
de blusas, de calças, dentro
de rudes sapatos feitos de pano e palha, gira
ao contrário a vida feita de morte.
Surdo
sistema de álcool, gira
gira, apaga rostos, m
ãos,
esta mão jovem
que saiba ajudar o arroz, tecer a palha. Há mortos
demais, há mortes
demais, coisas da infância, a hortelã, os sustos
do amor, aquela tarde aquela tarde clara, amada,
aquela tarde clara tud
o
tudo se dissolve nas águas marrons
e entre nenúfares e limos
a correnteza arrasta para o mar o mar o mar azul

É dia feito em Botafogo.
Homens de pasta, paletó, camisa limpa,
dirigem-se para o trabalho.
Mulheres voltam da feira, as bolsas cheias de legumes.
Crianças passam para o colégio.
As nuvens nuvem
e as águas batem naturalmente
em toda a orla marítima.
Nenhuma ameaça pesa so
bre a cidade.
As pessoas
marcaram encontros, irão ao cinema, à buate, se amarão
nas praias
na cama
nos carros. As
pessoas
acertam negócios, marcam viagens, férias.
Nenhuma ameaça
pesa sobre a cidade.
Os barulhos apitos sem alarma. O avião no céu
vai para São Paulo.
O avião no céu não é um Thunderchief da USAF
que chega traze
ndo a morte
como em Hanói.
Não é um Thunderchief da USAF que chega
seguido de outros
e outros
da USAF
carregados de bombas e foguetes
como em Hanói
que chega lançando bombas e foguetes
como em Hanói

como em
Haiphong
incendiando o porto
destruindo as centrais elétricas
as estradas de ferro
como em Hanói
como em Hoa Bac
queimando crianças com napalm
como em Hanói
como em
Chien Tien
como em Don Hoi

como em Tai Minh
como em Vihn Than
como em Hanói
Como pode uma cidade, como pode
uma cidade
resistir

Os americanos estão agora investindo muito no Vietnam
O Vietnam agora nada em ouro
e fogo
Bases aéreas
Arsenais
Depósitos de combustíveis
Laboratórios na rocha
Radar

Foguetes
A ciência eletrônica invade a selva
gases novos, armas novas
O lazy-dog

lança em todas as direções mil flechas de aço
o bull-pup
procura o alvo com seus 20
0 quilos de explosivos
o olho-de-serpente
pousa sobre uma casa e esp
era a hora certa de matar
O Vietnam agora está cheio de arame farpado
de homens louros
farpados
armados
vigiados
cerca
dos
assustados
está cheio de jovens homens louros
e cadáveres
jovens
de homens louros
enganados

Próximo à base de Da Nang
que tudo escuta e tudo vê,
próximo à base de Da Nang, esgueira-se
entre árvores um homem,
próximo à base cheia de soldados,
metralhadora
s, bombas,
aviões, cheia
de ouvidos e de olhos
eletrônicos, um homem, chamado Tram,
entre as folhas e os troncos que cheiram a noite,
cauteloso s
e move
entre as folhas da noite, Tram Van Dam,
cauteloso se move
entre as flores da morte
Tram Van Dam

quinze anos se move
entre as águas da noite
dentro
da lama
onde bate a aurora
Tram Van Dam
onde bate a aurora
Tram Van Dam
com a sua granada
entre cercas de arame

entre as minas no chão
Tram Van Dam
com seu cor
ação
Tram Van Dam
onde bate a aurora
por você por mim
sob o fogo inimigo
com o grampo no dente
com o braço no ar
por você por mim

Tram Van
Dam
onde bate a aurora
por você por mim
no Vietn
am



Carlos Drummond de Andrade

A falta que ama

Entre areia, sol e grama
o que se esquiva se dá,
enquanto a falta que ama
procura alguém
que não há.
Está coberto de terra,
forrado de esquecimento.
Onde a vista mais se aferra,
a dália é toda cimento.
A transparência da hora
corrói ângulos obscuros:
cantiga que não implora
nem ri, patina
ndo muros.
Já nem se escuta a poeira
que o gesto espalha no chão.
A vida conta-se inteira,
em letras de conclusão.
Por que é que revoa à toa
o pensamento, na luz?
E por que nunca se escoa
o tempo, chaga sem pus?
O inseto petrificado
na concha ardente do dia
une o tédio do passado
a uma futura
energia.
No solo vira semente?
Vai tudo recomeçar?
É falta ou ele que sente
o sonho do verbo amar?


Poesia Marginal - Poesias retiradas do livro “26 poetas hoje”

Manhã de frio
Isabel Câmara

Trata-se de uma certa dama
que acorda aflita pelo dia
observando da janela do seu
Disco-Voador
o cinza que se irradia
desde a música —
Romântica e Alemã
até a cor fria da Dor.


Aquela Tarde
Chico Alvim

Disseram-me que ele morreu na véspera.
Fora preso, torturado. Morreu no Hospital do Exército
O enterro seria naquela tarde.
(Um padre escolheu um lugar de tribuno.
Parecia que ia falar. Não falou.
A mãe e a irmã choravam.)

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